Entre gols e cifras: CPIs das apostas esportivas radiografam um Brasil viciado em risco e órfão de regras claras

O Congresso Nacional mergulhou de cabeça no bilionário e, por vezes, nebuloso universo das apostas esportivas online, as "bets". Duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), uma já concluída e outra em pleno vapor no Senado, descortinam uma realidade complexa: um mercado em expansão meteórica, crivado por suspeitas de manipulação de resultados, o avanço preocupante do vício entre apostadores e a utilização de plataformas para lavagem de dinheiro. Enquanto parlamentares buscam respostas e propõem soluções, a sociedade assiste a um debate que oscila entre o espetáculo político circense e a urgente necessidade de colocar rédeas em um setor que, por muito tempo, operou à margem de uma regulamentação efetiva.
A primeira grande ofensiva parlamentar, a CPI da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas (CPI MJAE), encerrada em março de 2025 sob a presidência do senador Jorge Kajuru e com relatoria de Romário, focou suas baterias na integridade do esporte. Seu relatório final foi contundente: pediu o indiciamento de figuras como William Pereira Rogatto, conhecido por confessar a manipulação de jogos, e Bruno Tolentino, tio do jogador Lucas Paquetá, além de propor emendas constitucionais e projetos de lei para endurecer o combate à fraude em resultados esportivos. A mensagem era clara: o fair play estava sob grave ameaça.
Mal esfriaram os trabalhos da CPIMJAE, e uma nova investigação tomou corpo no Senado: a CPI BETS, oficialmente "CPI das Apostas Esportivas". Comandada pelo senador Dr. Hiran e tendo a senadora Soraya Thronicke como relatora, esta comissão ampliou o escopo. Seu objetivo atual é devassar o impacto crescente das apostas no orçamento das famílias brasileiras, apurar possíveis elos com organizações criminosas e esquemas de lavagem de dinheiro, e, crucialmente, investigar o papel dos influenciadores digitais na promoção massiva dessas plataformas.
Nomes de grande alcance popular, como Virginia Fonseca e Rico Melquiades, foram chamados a depor, gerando grande repercussão midiática e levantando questionamentos sobre a responsabilidade de quem empresta sua imagem para um mercado com tantos riscos associados. Investigações sobre empresas como a Payflow Processadora de Pagamentos, suspeita de facilitar atividades financeiras ilícitas e lavagem de dinheiro, e sua possível ligação com a Peach Blossom River Technology, também estão no radar da CPI BETS, indicando a complexidade das tramas financeiras envolvidas.
A atuação das CPIs, em especial a atual, não escapa de críticas. Analistas questionam se, por vezes, o foco não se desvia para o "espetáculo", especialmente durante os depoimentos de celebridades da internet, em detrimento de um aprofundamento em questões sistêmicas mais áridas, porém fundamentais. Seja como for, é inegável que as comissões trouxeram à tona (ou amplificaram) debates cruciais:
- a manipulação persiste: embora a CPI MJAE tenha se debruçado sobre o tema, a manipulação de resultados continua sendo uma sombra a pairar sobre a credibilidade esportiva, exigindo vigilância constante;
- o custo social do vício: o crescimento exponencial das apostas tem um lado sombrio: o aumento da ludopatia (vício em jogar) e o endividamento de famílias. A facilidade de acesso, a publicidade agressiva e a promessa de ganhos fáceis criam um terreno fértil para problemas de saúde pública; e
- a lavagem de dinheiro como risco sistêmico: as plataformas de apostas podem estar sendo instrumentalizadas para lavar dinheiro do crime organizado, um risco que ameaça a integridade do sistema financeiro.
Paralelamente aos trabalhos das CPIs, e no mar do labirinto jurídico das bets, o Brasil finalmente viu nascer um marco regulatório um pouco mais robusto para o setor com a Lei nº 14.790 de dezembro de 2023. A nova legislação estabelece regras para a operação das empresas, impõe restrições à publicidade (proibindo direcionamento a menores e mensagens que associem apostas a sucesso fácil), e determina a adoção de medidas de jogo responsável e de prevenção à lavagem de dinheiro. A Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda também editou portarias complementares, detalhando exigências como a identificação facial de apostadores e a proibição de bônus de entrada.
No entanto, a gênese e a implementação dessa regulamentação não são isentas de críticas, até porque as normas ainda são deveras vagas. Aponta-se, por exemplo, que a tramitação da Lei nº 14.790/2023 foi marcada pela urgência e por um foco excessivo na arrecadação fiscal, em detrimento de um debate multissetorial mais aprofundado, especialmente com a área da saúde. A baixa participação do Ministério da Saúde nesse processo é vista como uma falha grave. Não à toa, trechos da lei já são objeto de questionamento no Judiciário.
Mesmo com a nova lei, desafios gigantescos persistem, como aqueles relacionados à fiscalização efetiva, ao combate ao mercado ilegal e questões de educação e prevenção.
As investigações no Congresso Nacional são um passo necessário para entender e tentar controlar um fenômeno que rapidamente se entranhou na cultura e na economia brasileira. Contudo, o apito final está longe de ser dado. A questão que permanece é se o ímpeto investigativo e legislativo resultará em uma transformação duradoura, capaz de equilibrar os interesses econômicos de um mercado bilionário com a proteção da integridade esportiva, da saúde pública e da segurança financeira dos cidadãos. Senão, passada a febre das CPIs, o Brasil continuará correndo atrás do prejuízo, em um jogo viciado onde os maiores perdedores serão sempre os mais vulneráveis.